verso o verso

Enquanto uma sensação angustiante toma o meu peito, desço a Avenida Rio Branco rumo a caminhos.

Meus passos inseguros, esbanjando toda a sua incerteza, envoltos por uma turva nebulosa de dúvidas. Meu ser inseguro a se olhar nas vitrines, nos reflexos das portas que se erguem como muralhas diante de meus olhos. São portas, os olhos anunciam e, num breve movimento vacilante, muralhas. Corto caminhos, colo, rasgo-os. Pela avenida passa agora quem mais desconheço. Ou assim prefiro me referir a mim.

Quando o meu reflexo toma por inteiro os vidros negros de um prédio alto, esbelto, seguro e opulento, o olhar melancólico percorre e distorce o que outrora havia visto, ouvido, falado, sentido sobre mim. Até mesmo o que toco durante as noites, já não pareço conhecer, já não reflete. Já não reconheço. A visão, sobreposta a todos os outros sentidos, fez-me um simulacro de mim. Tornei-me um fantasma a assombrar, a rondar, a procurar, em círculos infinitos, repetições obsessivas e já não me sou então.

De fato, já não poderia me ser, se nunca fui ou nunca dei a conhecer. Estou.

Decido por ora admitir a inconstância. No momento que assim me comporto, os ponteiros dos relógios parecem retroceder; na carrocinha, o vestido branco que envolve o milho dentro da pipoqueira é engolido por sua casca; todas as luzes começam a se apagar até as vitrines se iluminarem apenas com o retrato de multidões que percorrem, a passos tímidos, o caminho ao trabalho. Sair de si é provocar desordem.

Quando ponho a equação no papel, torno-me constante e que alguém sufoque a variável por mim. Quando visto a inconstância, verso o verso, vice e versa.

Mas era hora do almoço, a sensação angustiante percorre o peito até o movimentar das portas da livraria. Acolhida em meio às páginas que contam, guardam e escondem histórias. As paredes estruturadas por estantes de madeira maciça e preenchidas com pilhas e pilhas de livros que não cessam de chegar, porque assim não cessam de ser escritos. A escada em caracol me leva ao café e dali observo o entra e sai de pessoas. Mais entram do que saem, porque se perdem, cada vez com mais facilidade entre as colunas de blocos coloridos. Vermelho, verde, preto, azul, branco, roxo, rosa. O tom sóbrio e escuro das estantes contrasta com as cores que insistem em vibrar diante dos olhos do leitor. O conjunto da obra é tão bonito que ali poderia permanecer sentada durante uma vida.

E esta duraria tão pouco que não me seria tedioso ou cansativo vivê-la.

Ao explorar, com os próprios pés, a areia da imensidão de livros que me cerca, a vida se torna um breve instante a passear entre os personagens de cada história. Sou Scout, Dill e Jem, Ciccio de Hollander e Sérgio Ernst, Sofia, Eveline, Marjorie e Nick. Fecho os olhos, solto um suspiro aliviado. É bom ser, quando ser não é só sobre ser você. Desço as escadas e refaço o caminho rumo ao trabalho enevoada agora pelos sonhos de ser Harper Lee, Chico Buarque, Clarice Lispector, James Joyce, Ernest Hemingway. Cantarolando e batucando uma melodia conhecida, atravesso a guarita do prédio. Não há outro jeito senão ser.

Estou.

Quem sabe, sou.

E verso o verso.

(2017)

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